Uma operação da Polícia Civil realizada nesta quinta-feira na favela do Jacarezinho, na Zona Norte do Rio de Janeiro, já se tornou a segunda maior chacina da história da cidade. Até 15h havia 25 pessoas mortas, entre elas um policial civil baleado na cabeça, segundo autoridades. Os demais são considerados suspeitos pela Polícia. O Instituto Fogo Cruzado contabilizou um total de 29 pessoas baleadas ao longo de sete horas de operação —entre eles, três policiais civis e duas vítimas de bala perdida.
De acordo com o relato de quem acompanha a operação no local, os agentes estão invadindo a casa de moradores para realizar revistas —que só podem ocorrer com mandado judicial— e estão colocando os corpos das pessoas mortas em veículos blindados da corporação. Em uma das imagens recebidas pelo EL PAÍS, três agentes carregam um corpo em um lençol branco, atrapalhando qualquer trabalho de perícia. Este jornal entrou em contato com a Polícia Civil e com o Ministério Público do Rio, responsável por investigar eventuais abusos policiais, mas até o fechamento desta edição não recebeu as respostas.
A ação policial desta quinta-feira demonstra que, mesmo durante a pandemia de coronavírus, a política de segurança pública do governador Cláudio Castro (PSC) no Estado do Rio segue sendo pautada pelo confronto direto com traficantes de droga em favelas e bairros periféricos, em desrespeito a uma decisão do Supremo Tribunal Federal. Em junho do ano passado, o STF proibiu operações policiais desse tipo durante a crise sanitária, salvo em “hipóteses absolutamente excepcionais” e desde que devidamente justificadas ao Ministério Público do Rio.
Um mês depois, as operações policiais diminuíram 78%, as mortes em tiroteios caíram 70% e a quantidade de feridos, 50%. Ao mesmo tempo, 30 vidas teriam sido poupadas em julho, segundo um estudo feito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Mas, mesmo com a ordem do STF, os números voltaram a crescer em novembro. Somente em 2021, o Instituto Fogo Cruzado já registrou 30 chacinas —casos em em que três ou mais pessoas foram mortas a tiros em uma mesma situação— na região metropolitana do Rio. “Ao todo, já são 139 mortos nessas circunstâncias”, afirma a plataforma, que monitora os tiroteios no Estado. Nos dias 16 e 19 de abril deste ano, o ministro Edson Fachin realizou uma audiência pública com familiares de vítimas, organizações não-governamentais, especialistas e representantes das corporações policiais para debater estratégias de redução da letalidade policial. “É surreal que duas semanas depois dessas audiências a polícia continue com essa lógica do confronto, que coloca em risco nossa vida e que não respeita os nossos direitos, nossas casas e nossas vidas”, afirmou um morador do Jacarezinho em condição de anonimato.
A operação começou por volta de 06h45, com helicópteros dando rasantes e policiais avançando pelos trilhos do trem e do metrô, que cortam a favela na superfície. “Eram muitos policiais entrando por todas as áreas do Jacarezinho. Muitos estão encapuzados. A gente recebeu a notícia que um deles foi baleado, e aí os tiros passaram a ser bem mais intensos”, afirmou o mesmo morador, que acredita que os agentes passaram a agir com revanchismo —como já aconteceu em outras ocasiões no Rio. De acordo com o portal G1, o nome do agente morto com um tiro na cabeça é André Farias.
O mesmo portal também informa que o tiroteio intenso afetou a circulação do metrô e feriu dois passageiros dentro de um vagão. Uma Clínica da Família e outros dois postos de vacinação contra a covid-19 precisaram ser fechados. Os moradores tiveram que se trancar em casa para se proteger dos tiros, deixando as ruas praticamente desertas. Uma noiva estava de casamento marcado e uma mulher grávida havia agendado uma cesariana para o dia.
O chão e a cama de uma casa no Jacarezinho aparecem cobertos de sangue, após operação policial nesta quinta-feira.
O chão e a cama de uma casa no Jacarezinho aparecem cobertos de sangue, após operação policial nesta quinta-feira.SILVIA IZQUIERDO / AP
O EL PAÍS recebeu imagens de corpos caídos no chão e pessoas ensanguentadas. Também circulam fotografias de casas com marcas de bala e paredes e pisos manchados de sangue. “Tenho uns 10 relatos de pessoas contando que a polícia entrou em suas casas revistando e jogando tudo para cima. A favela inteira está tomada”, afirma o morador. Em um áudio recebido por este jornal, outro morador do local relata a seguinte cena: “Entramos numa casa aqui com pedaço de massa encefálica. Invadiram a casa de uma senhora e torturaram o cara aqui dentro, a casa está toda suja de sangue”. Outra pessoa também relatou que em uma residência havia quatro mortos em uma laje e que os agentes não deixavam ninguém entrar. Há também denúncias de que agentes confiscaram os telefones moradores, sob o argumento de que mandavam informações para traficantes, segundo o G1. “Estão pegando telefone e agredindo morador”, relatou uma pessoa ao programa RJ1, da TV Globo.
A favela do Jacarezinho é considera uma importante base do Comando Vermelho. Ainda de acordo com o G1, a Operação Exceptis investiga o aliciamento de crianças e adolescentes para ações criminosas, como assassinatos, roubos e até sequestros em trens da Supervia. Imagens mostram homens armados tentando fugir da ação pelas lajes das casas. A ação resultou na segunda maior chacina do Rio de Janeiro. A maior até o momento ocorreu nos municípios de Nova Iguaçu e Queimados, na Baixada Fluminense, em 2005. Nesse dia, grupos extermínio mataram 29 pessoas. A ação também supera as chacinas de Vigário Geral, que terminou com a morte de 21 pessoas em 1993, e da Vila Vintém, onde uma disputa de traficantes deixou 19 mortos.
A situação está sendo acompanhada pela Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro e pela Defensoria Pública do Estado. O EL PAÍS entrou em contato com a Polícia Civil perguntando sobre o número de mortos, os motivos da operação policial e se corporação cumpriu os procedimentos determinados pelo Supremo para a realização de operações policiais. Também perguntou o nome do policial morto, o contexto de sua morte e como a corporação justifica o óbito de mais de 20 pessoas durante a ação. Questionou, além disso, se os agentes agiram com o intuito de vingar a morte do colega, e se tinham mandado judicial para revistar a casa dos moradores. Por fim, buscou confirmar se os agentes estavam, conforme diziam os relatos, colocando os corpos de pessoas mortas nos veículos blindados. Ao Ministério Público, o EL PAÍS perguntou se o organismo havia sido informado da operação, como determina o STF, e se pretende abrir inquérito para investigar a chacina. O jornal não recebeu nenhuma resposta até a publicação desta reportagem.
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